Moderato Cantabile (Hilda Hilst) Livro Da Poesia
Moderato Cantabile é uma poesia de Hilda Hilst muito querida que se encontra no seu livro Da poesia. Leia-o completo a seguir e continue se deliciando com as palavras da autora brasileira.
Poesia de Hilda Hilst
I
A ideia, Túlio, foi se fazendo
Em mim.
Era alta a lua, e aberta
A porta escura da minha casa vazia.
Te pensei. E na minha alma fez-se
Um gosto licoroso, mordedura
Mais doce do que a própria ventura
De existir
E te pensando foi subindo a lua
E vivendo meu instante fui te vendo
Da minha vida cada vez mais perto.
A ideia, Túlio, redonda, esboçada
Em azul, em ocre e sépia
Era a tua vida em mim, circunvolvida.
II
E circulando lenta, a ideia, Túlio,
Foi se fazendo matéria no meu sangue.
A obsessão do tempo, o sedimento
Palpável, teu rosto sobre a ideia
Foi nascendo
E te sonhei na imensidão da noite
Como os irmãos no sonho se imaginam:
Jungidos, permanentes, necessários E
amantes, se assim se faz preciso.
Tocar em ti.
Recriar castidade
Não me sabendo casta, ser voragem
Ser tua, e conhecendo
III
Ser nova e derradeira, recompondo
Madrugada e manhã no teu instante.
Ser tão extrema, Túlio, tão primeira
Mais te valendo percorrer meu corpo
Do que a matriz da terra.
Tu me dirias:
Louca, pastora do meu tempo, te demoraste
Eterna.
A ideia, Túlio, vai se fazendo rubra
À medida que vou te refazendo.
IV
E quanto mais te penso, de si mesma
Se encanta a minha ideia.
Vertiginosa
E tensa como a flecha, contente de ser viva
Te procura
Sagitário-algoz, homem-amor, teu nome
Que é preciso esconder do meu poema.
Te chamarás, quem sabe, Rufus, Antônio
Se outros olhos se abrirem sobre o verso.
A justiça dos homens, essa trama imprecisa
Me puniria a mim, me chamaria ilícita
Se o verso se mostrasse com teu nome.
A ideia, Túlio, essa ilha escondida
É límpida, encantada, se faz prata
Vive através de ti. Por isso brilha.
V
E se parece a Mei, pequena estrela
Viva na constelação de Sagitário.
Vive dentro de ti, dupla grandeza
O existir de agora, o céu em mim
No meu viver de sempre, solitário.
E de viver a ideia, de mim mesma
Do rosto, dos cabelos, do meu corpo
Dos amigos também, ando esquecida.
Rodeiam-me sem rosto, me perguntam:
E a ideia? E se vão apreensivos
Pois dupla vida é o que vive o poeta:
Entendimento e amor, duplo perigo.
A ideia, Túlio,
(resguarda-te do susto, não te aflijas)
É na verdade tudo o que me resta.
VI
Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do
Tempo que os devore.
E degustando o êxito do
Agora
A cada instante me vejo renascendo
E no teu rosto, Túlio, faz-se um
Tempo
Imperecível, justo
Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para frente:
Indescritível, recortada, fixa.
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