Hilda Hilst, uma das vozes mais potentes da literatura brasileira – e mais amada por aqui -, é conhecida por sua obra multifacetada e profundamente introspectiva.
Em seu livro “Da Poesia“, destaca-se “Sete cantos do poeta para o anjo”, uma coleção de poemas que explora temas de amor, espiritualidade e existência com uma sensibilidade única.
Decidimos te mostrar os versos completos de Hilst para que você possa sentir o significado por trás da junção dessas palavras, vindo, claro, de uma autora indispensável para qualquer amante da poesia.
Se algum irmão de sangue (de poesia)
Mago de duplas cores no seu manto
Testemunhou seu anjo em muitos cantos
Eu, de alma tão sofrida de inocências
O meu não cantaria?
E antes deste amor
Que passeio entre sombras!
Tantas luas ausentes
E veladas fontes.
Que asperezas de tato descobri
Nas coisas de contexto delicado.
Andei
Em direção oposta aos grandes ventos.
Nos pássaros mais altos, meu olhar De novo incandescia. Ah, fui sempre
A das visões tardias!
Desde sempre caminho entre dois mundos
Mas a tua face é aquela onde me via
Onde me sei agora desdobrada.
Se te anuncio lágrimas e haveres É para te encantares do meu canto.
Um tempo me guardei
Tempo de dor aquele
Onde o amor foi mar de muitas águas.
Se te anuncio ainda
É porque sempre em pedra fui talhada.
Em sal me consumi. E perecível
Tem sido a minha forma:
Estes dedos lunares, estas mãos E tudo o que não foi tocado em ti.
Me queres em renúncia, em humildade Ou íntegra e sozinha nestes cantos?
Tive ressurreição e anteprantos
E alegrias inteiras.
E muitas madrugadas
A sós me confessei
Àquela irmã soturna e mais amada.
Vi quase tudo. E quase tudo andei.
E largamente amei as criaturas.
Os ouvidos se abriam. Ramas frágeis Meus ouvidos, aceitando ternuras.
Uns regressos de vida me contavam:
Pactos, adolescências, heroísmos.
(Tessitura franzina
Se estendendo sobre a pele mais fina)
Acaso não fui cúmplice dos meus?
Desses vindos da noite e turbados
Com seus próprios destinos?
Que terrível engano antes de ti!
E vigílias inúteis e pobrezas
E punições maiores, tais cilícios Na carne! Tramas, tramas…
Que era feito de ti? Em mim, não eras.
E por que me escolheste?
Em direções menores me plasmei.
Entre uma pausa e outra fui cantando
Umas reminiscências, uns afetos E carregava atônita meu gesto Porque dizia coisas que nem sei.
Ouvi continuamente muitas vozes.
Umas de fogo e água, tão intensas
Outras crepusculares
E entendia
Que era preciso falar de uma ciência
Uma estranha alquimia:
O homem é só. Mas constelar na essência.
Seu sangue em ouro se transmuta.
Na pedra ressuscita.
No mercúrio se eleva.
E sua verdade é póstuma e secreta.
Ah, vaidade e penumbra no meu canto!
Meu dizer é de bronze
E essa teia de prata
A mim mesma me espanta.
Eu nem soube falar do amor nos homens.
(Amor feito de júbilo aparente)
Nem soube replantar no que era terra
Uma mesma semente.
Tive no peito o mantra mais secreto E não pude vibrá-lo, alento, lira Corda divina no seu veio certo.
Elaborei em vão todos meus sonhos.
E súbito me tomas e me ordenas
A solidão mais funda:
Estes cantos agora, alguns poemas Um amor tão perfeito e indizível
Porque não é tumulto nem tormento
(E se o homem na carne foi punido O verbo diz melhor do sofrimento.)
Que nome te darei se em mim te fazes?
Se o teu batismo é o meu e eu só te soube
Quando soube de mim?
A noite em verso torpe me atingia.
As coisas insofridas
Sofridas se faziam
Se eu repousasse a mão sobre suas vidas.
Umas tardes meus olhos repensaram
Uma alvura de águas pretendida.
Tão leve caminhei sobre essas águas
Que a memória foi quase imerecida.
Onde estavas então? Nem me sonhavas.
Deitei-me sobre um tempo que viria
E um ciclo de visões me revelava Que no ódio dos deuses fui lembrada
Em alto voo de ave, a esquecida.
E porque paz e voo me faltavam Eu desejei perder-me mais e tanto Quanto fossem as perdas destinadas Aqueles incapazes de algum pranto.
Perenidade e vida: Onde estavas?
Te ocultaste. Eu morria.
Tinha na fronte a chaga
E o dorso calcinado, em agonia.
Na treva de mim mesma delirava
E as pálpebras em brasa
Não sabiam da tua claridade
Porque minha alma toda se perdia
E uma vida terrena começava
Seu círculo de cinza
Sua casa.
Anjo, asa,
Mão poderosa sobre a minha mão
Que o verso nunca mais transfigurava.
Prisma solarizado
Transcendência primeira
Dulcíssima presença:
Alta noite
O que foi treva em mim
Em ti resplandecia.
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